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  • Foto do escritorHerena

Faz Mal Assim Não

A sabedoria popular é pra mim um encanto. É que eu tenho essa coisa de me encantar pelo simples. E desconheço o que seja mais simples do que esse tudo numa coisa só.

– Não, menino, isso faz mal.

Para qualquer isso um mesmo mal.

Não duvido da sabedoria dos experientes. Imagino que já tenham sentido na pele o ‘mal’ que certas coisas podem fazer. Tenho muito respeito. Só não siga tudo à risca. Não é que eu duvide, é porque eu não tenho muita fé nas coisas. Coisa de minha geração.

Não tenho muita fé nas coisas, então tendo a desconfiar que por vezes quando os pais estão com preguiça de explicar as consequências de qualquer algo que não querem que os filhos façam, resumem tudo num ‘faz mal’. Não duvido da sabedoria dos experientes, mas desconfio que muitas vezes o “faz mal” foi usado de forma ilícita. E o mais interessante é que nessa coisa de geração para geração, rapidinho uma informação, certa ou errada, toma proporções dramáticas. Especialmente quando caem nas mãos de pessoas que têm o drama correndo nas veias. De repente, o mal de deixar um sapato errado – por errado entenda-se: com as correias para baixo – é tão grande, que nós, pobres crianças, ao descobrirmos no fim da brincadeira a chinela virada, deitamos pra dormir esperando a morte.

Esperávamos a morte porque, ao certo, ninguém sabe que ‘mal’ é esse. Não vi, nos meus 27 anos de vida, alguém que discorresse ou mesmo perguntasse sobre o mal. Simplesmente - e eu amo essa palavra – o mal se faz, ou é feito, dispensando explicações.

Quem explicasse o mal eu até vi uma vez sim. Mas não deu certo. Inventaram que o mal do chinelo virado era a mãe morrer. Mas uns desavisados que esqueciam esse tal chinelo ao avesso, continuavam tendo mãe viva, e por um bom tempo. Concluímos que o mal não era perder a mãe. Pode não ser isso, mas anos depois, as crianças ainda temem o mal do chinelo às avessas, seja ele qual for.

Às avessas não pode a roupa também. Ontem meu irmão, jovem, pouco experiente na vida, recriminou-me por fazê-lo. Eu ri. Ele não. Olhei pra cara dele e era cara de quem censurava. Mesmo. Peguei a roupa e deixei como estava, mas no meu quarto, longe dele. Eu guardo a roupa ao avesso, que é para estragar menos. Mas saí de perto dele. Diga-se de passagem, não deixo vovó, nem minhas tias avós, se aproximarem do meu guarda-roupa tão provocador. É porque eu não sigo à risca os rituais de zelo pelo ‘não mal’, mas prefiro não cutucar com vara curta a fé de quem acredita.


A fé é algo incrível, do verbo difícil de crer mesmo. Outro dia, em casa, sozinha, tomei três copos de manga com leite - cremoso que só. Poderia ter passado mal, inclusive pela gula do excesso. Não passei. Isso torna ainda mais confuso o fato de, certa feita, uma mordida de manga e um gole de leite ter me deixado tão indisposta, até que fosse benzida. O mal quase que me pegou. E olha que eu já estava perdendo a fé nas coisas, mas era a casa de vovó e ela sabe que manga com leite faz mal.

E se eu tomar na frente dela faz. Porque o que me impressiona na fé é que ela ultrapassa a barreira do próprio. Minha fé não vale só pra mim. Seria, até psicologicamente, compreensível que minha avó, acreditando nos malefícios da combinação leite-manga, ao ingeri-la, sofresse as consequências da transgressão. Mas o mal que ela acredita, pega em mim, que acredito tão pouco. É um mistério.

É mistério também pensar que mal é esse que vai de leite com fruta à higiene e fisiologia. Sim, porque também não se pode lavar a cabeça no período menstrual. Pensando em todas as coisas que fazem mal, e estou falando só das que eu já ouvi, não consigo imaginar um mal que possa ser compatível com todos. Não encontro a intercessão. Mas que há de haver, isso há. Bem sabem os avós e os pequeninos, que são as pessoas que têm muito mais fé nas coisas.

Quando era pequenina, entre as coisas que me sufocavam antes de dormir estava saber que males eram esses, e quantos eu havia atiçado durante o dia. Sim, porque com certeza, entre as coisas que eu havia feito, embora não soubesse, muitas deviam causar mal. Ficava numa angústia terrível.


E era angustiante também não saber das graduações do mal. Claro é que o chinelo virado faz mal, mas uma vez fiquei com um aperto no peito porque encontrei meu chinelo na parede, de lado, na vertical, entre o ideal e o transviado. E aí, estava eu correndo perigo? Qual seria o limiar da retidão? A essa altura eu já sabia que o mal não era perder a mãe, mas... não era recomendável desafiar. Não notei mal algum. Não tendo sofrido nada muito além do corriqueiro, ensinei a todos os meus amigos que o chinelo só meio-virado não era tão perigoso.

De perigo das coisas as crianças também não entendem, porque para elas a vida é urgente e cabe no espaço entre acordar e dormir. Só depois de uns dias, quando tomei coragem de contar, visto que julgava o perigo extinto, é que vovó me explicou que nem sempre o mal chega no mesmo dia. Se chinelo meio-virado faz mal no futuro, na minha turma ninguém ia saber.

Não sabemos ainda de outros graus de perigo. Lavar a cabeça menstruada faz mal, fato. Mas e se apenas molhar? E se só respingar? O mal está na água ou no shampoo? Tenho pra mim, que cada vó tem a resposta que lhe convêm. Mas é que hoje tenho pouca fé nas coisas.

Sem fé, eu corri, e venho correndo, grandes riscos como jogar sal em sapo, varrer casa na sexta-feira da paixão, beber leite com manga, ou abacaxi, ou limão, guardar ou vestir roupas às avessas, deixar chinelos virados, lavar a cabeça quando menstruada, tomar banho depois do almoço, dormir com os pés virados pra cabeceira da cama, abrir guarda-chuva dentro de casa.

Tenho em mim, uma certa tendência à transgressão. No fundo não sei se perdi a fé, ou se acredito tanto que fico atiçando no intento de descobrir que mal é esse.

O mal não sei qual é, mas sei de uma coisa: passei a infância sendo cuidada para o mal não me atingir. E gosto que, mesmo sendo uma menina crescida e boba, sem fé nas coisas, vovó ainda teima carinhosamente em me alertar das coisas perigosas da vida, como pular janela de casa de dentro pra fora. A singeleza da fé é mesmo maravilhosa.

E maravilhoso mesmo é ter sido tão amada. Juro, esse tanto de faz mal inda hoje me faz um bem e tanto.


Herena

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